Sopreposições
Collage and mixed technique
2017


A história desta série, na qual o olhar historiográfico e artístico se cruzam e sobrepõem (sobre a contaminação recente entre historiografia e arte contemporânea veja-se The way of the Shovel do crítico Dieter Roelstraete) começa com o encontro fortuito com um conjunto de documentos históricos numa loja de um antiquário de Vila Real. Entre móveis, cadeiras, relógios amontoados na fascinante loja de Pedro Araújo, encontrei três livros de registo antigos de capa marmorizada. Um, estreito e longo, é um simples caderno de contas, utilizado no começo do séc. XX pelo Pe. Filipe Correia Mesquita Borges (1871-1951) (um fragmento da etiqueta na capa reca uma parte do nome) entre 1904 e 1921, e depois, sucessivamente, de forma mais confusa e desarrumada, entre os anos 1939 e 1942, provavelmente pelo descendente do mesmo, o Eng.º José Mesquita Borges Júnior. Os proprietários apontaram nos anos despesas e créditos, em duas colunas, da paróquia o padre, do ‘quintal’ o engenheiro. Entre as folhas deste caderno, estavam também guardados dezenas de apontamentos, recibos, cartas, talões de propriedade do mesmo Eng.º José Mesquita Borges Júnior. Os outros dois livros têm tamanho maior, capa marmorizada, e estão identificados como “S. Diniz – Livro do fundo da irmandade do Santíssimo Sacramento d’esta Villa Real”, e “Diário da Receita e Despesa da Irmandade do Santíssimo Sacramento da Freguesia ... Villa Real” (danificado e quase ilegível). São de facto dois livros de registo da Irmandade, onde estão registados os empréstimos que a confraria concedia à população local, anotando o valor emprestado, os juros pagos, e as eventuais hipotecas. No Portugal rural do séc. XIX, era comum as confrarias rentabilizar os seus capitais através de empréstimos a juros, e, na ausência de uma rede bancária institucionalizada, este era para a população local a única forma de acesso ao crédito. São dívidas contraídas na maioria dos casos entre 1840 e 1860, sucessivamente atualizadas com base nos pagamentos dos juros e das prestações. Na mesma loja de Pedro Araújo, encontrei algumas fotos e cartas postais antigas, que retratam a quotidianidade do Douro. Uma mulher com as filhas pequenas, um grupo de homens a posar para um retrato, um homem e uma mulher sentados numa mesa de café. Este conjunto de documentos, papéis, fotografias, são indícios que retratam, de forma oblíqua, uma atmosfera, um panorama emotivo da região. O que emerge, e em sintonia com reconstruções historiográficas da região duriense entre os séculos XIX e XX, é uma sociedade dominada por um lado pelo comércio, pelas contas, pelo dinheiro. Os documentos que encontrei são repletos de anotações, cálculos, apontamentos de dívidas: contas, empréstimos, juros, e mais contas. Por outro lado, da análise destes documentos emerge uma ‘sociedade do risco’ como poderia dizer o sociólogo Ulrich Beck, onde o horizonte quotidiano é dominado pelo imprevisível, pela flutuação dos mercados, pelo êxito das colheitas, pelo clima, pelas doenças, pelos acidentes. Além da imagem pitoresca do Douro como recanto da ruralidade feliz, quis mostrar neste trabalho a realidade de um mundo duro e pragmático, económico, fundamentalmente instável, constantemente ameaçado pela miséria, pela ruína, pela tragédia. Encontrei receitas médicas, recibos de seguros, cálculos de juros, hipotecas, contribuições para os bombeiros voluntários. Doença, falência, perda da colheita e de capitais, dívidas não pagas, incêndios, secas. A brutalidade do Douro, tal como aparece na obra de Torga. Esta dimensão da imprevisibilidade, da ruína que, ainda hoje, é sempre uma possibilidade ameaçadora: por isso integrei nos trabalhos também fotografias que tirei de zonas do Douro que foram recentemente afetadas por incêndios